Em 2019, um pouco antes da pandemia, estive em Purmamarca, aos pés dos Andes, no norte da Argentina, perto da fronteira com o Chile e a Bolívia. Foi a única vez na vida (até agora) que visitei um deserto. A cidade é uma pequena aldeia de origem indígena que se tornou patrimônio da humanidade em 2003 e recebe uma espécie de congresso de cultura regenerativa que talvez seja o evento mais minimalista do mundo.
Não tem nome. Não tem convite. Não tem programação. Não tem lista de palestrantes. Não tem inscrição. Não tem organizadores. Não tem divulgação. Ninguém paga nada. Ninguém ganha dinheiro. Mas existe e é incrível.
Na primeira quinta-feira de setembro quem chegar aparece na praça do pueblo com a intenção de participar de diálogos de qualidade. E por quatro dias as pessoas se reúnem na praça às 10h e às 16h. Coloca-se a questão: “Quem quer propor um tema?”. Mãos se levantam e a cada sessão 5 ou 6 assuntos aparecem. Coisas como emergência climática, compaixão, morte, tecnologia, ancestrais, ecologia local, feminismo, convivência em coletivos, empreendedorismo, polarização política, monogamia, dança, magia interior, partos, democracia, migrações, dinheiro…
Formam-se grupinhos de acordo com o tema que mais atraiu e a turma sai caminhando por alguns minutos em direção às montanhas. Senta todo mundo em roda e começa a “charla”. Não há regras, mas há um princípio: compartilhar experiências em vez de tentar convencer.
A edição 2019 de Purma (como o evento é apelidado já que não tem nome) recebeu um público flutuante de cerca de 200 humanos. A qualquer momento as pessoas chegavam e iam embora sem precisar dar satisfação a ninguém. O mais jovem participante que encontrei tinha 2 meses. A mais velha, uns 80 anos.
Cheguei a esse anticongresso por ouvir relatos de meus amigos regenerativistas de países hermanos. As conversas e experiências de que participei foram muito boas. E encontrei muita gente que também está na busca de uma sociedade baseada na paz e no amor a todas as formas de vida. No entanto, talvez mais importante do que o conteúdo de Purma seja sua (des)organização. Tenho participado de milhões de eventos e percebo muita energia, tempo, dinheiro e recursos naturais usados para produzir controles, crachás, administração de egos, divulgação, logística, brindes etc. Será que tudo isso é necessário?
Em Purmamarca conheci Gaston Cabana. Jovem argentino de ascendência indígena (povo colla — pronuncia-se “coja”), músico e ativista ambiental. Junto com alguns colegas da cidadezinha de Maimará, onde não existe coleta seletiva, montou um sistema de coleta de recicláveis. Mas a prefeitura foi lá e retirou os cestos. Participando do anticongresso, nos encontramos numa roda de conversa sobre consumo e logo o assunto virou horta. Assim como eu, Gastón é a primeira pessoa de sua família a retomar o trabalho com a terra. E no papo descobri que, além do problema com resíduos, há outras emergências ambientais nas quebradas (como são chamados os vales estreitos entre as montanhas) de Jujuy (a província mais ao norte de Argentina). São elas:
* Os adubos químicos, agrotóxicos e sementes transgênicas estão chegando com tudo a esse canto do mundo, colocando em risco o patrimônio genético milenar sobretudo das espécies de milho ancestrais (além de contaminar água, ar e solo, claro).
* As sementes tradicionais estão sumindo.
* O governo está apoiando a mineração de lítio nas montanhas, o que, além de contaminar água, ar e solo, usa quantidades gigantescas de água numa região desértica.
Apavorada com isso tudo, armei um certo furdunço no meio da galera flower power do encontro. Pedi que juntem esforços para ajudar Gastón e seus amigos a protegerem as sementes e a terra. E nós dois inventamos uma visita às plantações nos pés das montanhas. Chegamos bem na hora em que o agricultor estava misturando o adubo químico granulado com as mãos nuas. Snif.