São Paulo não está livre de tragédias climáticas como a que aconteceu no Rio Grande do Sul. Na verdade, os problemas já estão acontecendo. Secas, ondas de calor e chuvas concentradas que causam enchentes-relâmpago e ventos fortes estão a cada dia mais frequentes e ferozes. O que fazer para prevenir? Como deveriam ser os planos de emergência? O que o governo e a prefeitura devem fazer? O que cada pessoa pode fazer?
Conversei sobre esses assuntos com Ivan Maglio numa live do Instagram em 13 de maio de 2024 (https://www.instagram.com/p/C67S2tgvtDh/) . Ele é engenheiro civil com doutorado em Saúde Pública e pós-doutorado pelo Instituto de Estudos Avançados da USP. Esse post é a transcrição da entrevista.
Claudia Visoni – Ivan, como você se conectou com o tema de infraestrutura das cidades e da mudança climática?
Ivan Maglio – Eu sempre trabalhei com planejamento urbano e planejamento ambiental. E desde 2007, 2008, com os primeiros relatórios do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática), já se mostrava que a mudança climática vinha como efeito das mudanças que o homem tinha provocado no planeta. Então comecei a acompanhar os relatórios e estudar mais o tema. Eu já havia estudado Saúde Pública e Planejamento Urbano, mas comecei a trabalhar com a questão climática. Acompanhei as COPs, fui trabalhar no Rio de Janeiro, na preparação de uma estratégia de adaptação climática. A Secretaria Municipal do Meio Ambiente do Rio de Janeiro foi uma das primeiras a fazer inventário de clima para a cidade e criar uma estratégia de adaptação climática.
Claudia – Eu costumo falar que a mudança climática se apresenta em seis cenários: inundações, secas, ondas de calor, ondas de frio, ventos fortes e aumento do nível do mar. Hoje a gente vai focar principalmente na situação da Grande São Paulo, mas acredito que muito do que vai se falar se adapta a outras cidades também e vamos começar pela água. Quando a gente vê aquelas imagens do Rio Grande do Sul, de casas sendo arrastadas, cidades destruídas, vem uma pergunta na nossa cabeça: algo dessa magnitude poderia acontecer na minha cidade? Então eu te coloco, Ivan, num cenário extremo, em que o Guaíba subiu mais de cinco metros. A gente poderia ver o Tietê, o Pinheiros, subindo mais de cinco metros?
Maglio – Sim, poderia. Mas depende muito do volume de chuvas. No caso do Sudeste, onde nós estamos, há muita incerteza, mas no Sul não. Os modelos já indicavam mais possibilidades de acontecer isso no Rio Grande do Sul e no extremo sul. Isso já era muito claro e estava previsto na 3ª Comunicação Nacional do Brasil, já estava previsto no Brasil 2040, já estava previsto em vários relatórios que a tendência de ter eventos extremos de chuva eram muito passíveis de acontecer no Rio Grande do Sul, como acabou acontecendo. A previsão aqui para o Sudeste é um pouco diferente. A gente trabalha muito com modelos climáticos e eles fazem uma avaliação, um prognóstico do que pode acontecer no futuro. Mas os nossos modelos indicam a tendência de seca.
Claudia – Que é o que a gente tá vivendo nesse momento, né? A seca e a onda de calor no Sudeste e no Centro Oeste são o outro lado da moeda dessa inundação no Sul. O desmatamento seca aqui, a porção central do país, e esse ar seco vira uma muralha. Aí a frente fria não consegue entrar, a umidade não consegue subir…
Maglio – Esse é o fenômeno que tá ocorrendo lá no Rio Grande do Sul. As frentes frias não conseguem entrar porque tem uma espécie de barreira de calor no Centro-Oeste e no Sudeste. As frentes frias não quebram esse bloqueio, formam nuvens lá no Rio Grande do Sul e chove. Aqui a previsão de chuvas intensas existe e a gente já teve situações assim, de vento, mas o prognóstico não é tão preciso em relação à chuva como é para o calor e para a escassez hídrica. Então nós temos certeza que vamos ter graves situações como a gente já teve em 2014, onde houve uma escassez hídrica a ponto de haver risco de colapso no abastecimento. A gente precisou de um esforço danado, todo o mundo deve se lembrar das campanhas de reduzir o volume de consumo de água. Mas as chuvas podem acontecer e já aconteceram. E se fosse naquele volume, de 600 milímetros, certamente haveria inundações. Isso com certeza.
Claudia – Esses dias muitas pessoas publicaram infográficos mostrando a área alagada de Porto Alegre e sobrepondo em cima de outras cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador etc. É um exercício assustador porque você olha e se pergunta: “Cadê a minha casa? Tá debaixo d’água…”. Mas esse exercício não é acurado porque simplesmente pegaram a mancha de Porto Alegre e jogaram em cima dos mapas. Existem esses mapas de cota de cada cidade?
Maglio – Existem. Mas primeiro a gente precisa ver o conceito de risco climático. Esse conceito é: a ameaça e a questão do território, como ele é, sua vulnerabilidade específica. A nossa é diferente da de Porto Alegre ou do Rio Grande do Sul. A nossa vulnerabilidade é: nós estamos com um rio que nasce no planalto e vai para o interior. Estamos num planalto e a cidade está desenvolvida em torno de uma planície dos rios Tietê e Pinheiros. Então quando chove na cabeceira do Tietê, essa onda vem e vai atravessando a cidade. Então a água vai para o interior. Mas se as barragens não estiverem abertas, esse volume fica. Se estiver assoreado, esse volume cresce. E aí a chance dessa planície ser inundada é grande. Mas ela tem uma configuração própria. Então nós teríamos que ter um fenômeno que chovesse muito nesse contexto. Não seria a mesma mancha, é uma mancha diferente.
Claudia – Aprendi com você que a nossa rede pluvial não está preparada para chuvas de mais de 100 milímetros concentradas porque elas não existiam quando a cidade foi planejada. E em março de 2023, eu fiquei bastante impressionada com o caso daquela senhora que morreu em Moema. Ela entrou de carro numa rua e, em poucos minutos, água subiu. Mas pelo que você está falando, o cenário mais provável na Grande São Paulo é o de uma cidade mais seca e mais quente, que é o que já estamos tendo. Inclusive não existe mais garoa em São Paulo. A cidade está quente demais pra fazer garoa, então é ex-terra da garoa, mas estão aumentando essas chuvas muito concentradas e violentas, que arrastam pessoas e que podem afogar em minutos. Eu levantei uns números e descobri, por exemplo, que de 1941 a 1950 aconteceram duas tempestades de mais de 80mm e uma de mais de 100mm. Entre 2011 e 2020 foram 13 acima de 80mm e 7 acima de 100mm. Não encontrei as estatísticas dos anos mais recentes, mas a tendência está nítida. Então o cenário para o qual a gente está caminhando é: uma metrópole quente, seca e que, de repente, dá aquela tempestade arrasta pessoas em minutos. É isso?
Maglio – Exatamente. Em Santos, foi feito um estudo detalhado e específico, de modelo, que aquilo que acontecia de 15 em 15 anos, vai acontecer de cinco em cinco anos. Então você já tem isso acontecendo algumas vezes. E no caso de São Paulo seriam intensas. Lá naquele dia que aquela senhora faleceu afogada choveu 70 milímetros em quatro horas! E como são galerias previstas para 45, 50 milímetros – e não para 70 ou 100 milímetros -, em quatro horas já inunda certas áreas. E a bacia de Moema é toda impermeabilizada, tanto que uma chuva intensa de 70 milímetros já causou aquilo. Assim como no início deste ano aconteceu outro caso na região Leste da cidade, onde estão canalizando córregos para fazer medidas emergenciais por canalização, que é uma coisa ultra-ultrapassada, que aumenta a vazão, e não controla a vazão, mas eles fizeram essas mudanças e as pessoas foram surpreendidas. Morreram três ou quatro pessoas afogadas em São Miguel Paulista. As pessoas ficam surpresas porque de repente, o entorno da rua que elas circulam vira um rio rapidamente, o rio retoma o seu lugar. Então essa intensidade, mesmo não chegando a 200 milímetros – que seria muito grave – já é problemático quando chove nesses pancadões. Com ventos, às vezes. Lembra que em setembro do ano passado, quando teve chuvas com ventos de 70, 80 km/h, que derrubaram fios, árvores bateram em fios? A cidade ficou uma semana com mais de cinco mil residências com apagão. Aquilo também é manifestação climática. Então o caso de São Paulo é uma bacia, a bacia do Alto Tietê, que está numa planície. E se a gente sobrepuser a área urbana desses municípios, tanto a de São Paulo quanto as que são conurbadas (grudadas uma na outra), você não percebe a diferença. Você tem, por exemplo, São Paulo-Guarulhos: você entra em Guarulhos e sabe que tá em Guarulhos por causa da mudança de algumas coisas, mas a ocupação é grande, alta e verticalizada. Ela só vai diminuir entre Itaquaquecetuba e Mogi, quando você vai lá para o Leste. Ou para o Oeste, ela junta com Osasco. Então nessa mancha urbana Leste-Oeste, que é a direção dela mais forte (porque no Sul e no Norte nós temos alguns empecilhos geográficos, como a Serra da Cantareira e a Serra do Mar), os rios correm nesta direção, do Leste para o Oeste, e encontram toda essa mancha urbana intensamente ocupada, essa região de planície. E é muito rápida a inundação. Por isso que as pessoas ficam surpreendidas, os carros ficam dentro d’água, não dá tempo de sair. E a gente não tem sistema de alerta.
Claudia – Uma recomendação importante é levar a sério a tempestade, não é? Conhecer os lugares e, se a água começar a subir, lembrar daquela senhora que morreu afogada dentro do carro. É para largar o carro, largar tudo e sair dali porque a correnteza é forte e acontece muito rápido. É uma inundação relâmpago. Eu queria aproveitar que você comentou de canalização de rio, que continua a ser feita e vendida pelo poder público como um benefício, tanto canalização de rio como piscinão. Qual a sua opinião sobre piscina e canalização de rio? Isso serve para alguma coisa e o que deveria ser feito se isso não serve pra resolver o problema?
Maglio – É uma medida paliativa, mas completamente insuficiente porque você tenta domar as águas orientando, retificando o rio, canalizando. O que acontece? Ele ganha mais velocidade e mais vazão, mais rapidamente. E isso vai inundar outra área que está abaixo. Então a canalização tem o efeito de não espalhar para os lados, mas ela espalha para o ponto à frente e você vai inundar as áreas baixas, outros pontos. Por exemplo: todos os rios da zona Leste fluem para o Tietê. Ou para as marginais do Tietê. Então todas aquelas partes baixas ocupadas, quando começa a chover na zona Leste, vão inundar, como a gente fica ouvindo ali, a planície, Jardim Romano, Jardim Pantanal, vai sendo tudo inundado porque é muito rápido. E a canalização piora isso. Tem que fazer outras coisas. Eles também costumam fazer piscinão. O piscinão é para reter um pouco a água, mas isso tudo tem um limite possível. Eu estudei o caso de algumas regiões da Grande São Paulo. No ABC, fizeram vários, tem até um imenso lá no centro de São Bernardo. Mas chegou num limite. Se a gente não conseguir outras formas naturais de fazer a água penetrar no solo, de ter uma esponja, não adianta.
Claudia – Essa medida perdeu a eficácia.
Maglio – É uma medida paliativa que tem limite. O piscinão fica assoreado e sujo, perde o seu efeito e você não tem outras medidas. A orientação geral é que a cidade precisa ser mais resiliente. Precisa ter áreas verdes e deve funcionar como uma esponja. Com muito mais parques, praças, e praças não concretadas, absorvendo água, muito mais gramados. Isso sim faz a água penetrar no solo, não correr rapidamente para os fundos de vale e encontrar as pessoas em vias que foram feitas incorretamente nos fundos de vale. Como é o nosso caso. A maioria das grandes vias está nos fundos de vale. Então é o lugar mais arriscado quando essa chuva intensa acontece.
Claudia – Eu queria te fazer uma pergunta sobre médio prazo porque temos uma urbanização irresponsável aqui, de toda a Grande São Paulo, e acho que da maioria das cidades do Brasil, onde muitas vezes o poder público se fez de bonzinho deixando as pessoas ocuparem sem fazer seu trabalho de política de moradia popular séria. O que a gente faz? Tem que replanejar as cidades? No Rio Grande do Sul algumas cidades vão ter que mudar de lugar porque se inviabilizaram. Mas a gente aqui também não está livre desse cenário, dos deslizamentos, isso acontece com frequência, mortes, doenças. Você vê alguns passos sendo dados nesse sentido? Se não, quais seriam os primeiros passos a serem dados e quem seriam os responsáveis por eles?
Maglio – Bom, já existem situações semelhantes aqui. Nós temos em volta, por exemplo, da bacia do Alto Tietê, em Caieiras, Franco da Rocha, áreas de encostas. E, às vezes, represas, lá no alto, que se abre as comportas. Em Franco da Rocha, é quase inviável quando chove. Todas as vezes inunda o centro e todas as vezes tem escorregamento nas encostas. Você pode identificar as áreas de risco, como já temos feito. Nós temos 400 áreas de risco de escorregamento só em São Paulo. E 700 pontos de inundação. Então já se conhece. Nós temos que tratar essas áreas de risco, retirar as populações dessas áreas e colocá-las em áreas seguras. Agora esse estudo da vulnerabilidade do território, a gente tem um pouco de conhecimento, mas não tem ação suficiente para diminuir esse tipo de ocupação. O plano diretor de desenvolvimento integrado da Grande São Paulo – que orienta um pouco essa integração – não virou lei. Não foi mandado para a Assembleia, não está acontecendo e ele faria um pouco dessa organização do território da metrópole. Em fevereiro de 2023, encheu a raia da USP e juntou com o Pinheiros. Em pouco tempo. E nós não temos uma estratégia de aviso, de orientação. Precisamos reduzir essas ocupações irregulares, orientar os planos diretores para ter mais áreas verdes, para não ocupar áreas declivosas, não desmatar, respeitar as áreas de preservação permanente, as nascentes, quer dizer, fazer um trabalho reconhecendo que a natureza tem que ficar o mais íntegra possível. E não o mais destruída possível como está ocorrendo. E o outro lado, quando ocorre, mesmo estando com todos esses cuidados, você tem que ter avisos, orientações prévias, tem que ter uma governança.
Claudia – Que eu saiba, em São Paulo não existe nenhum sistema de aviso. Lá no litoral norte, depois daquela tragédia, foram colocadas sirenes. Aqui o poder público está sentado em cima desse mapa e, além de não fazer o plano de ação, ainda guarda essa informação – o que custa vidas, não é?
Maglio – Exatamente. Estou convencido que tanto na escala nacional, o caso do Rio Grande do Sul, aí, como na municipal, metropolitana, tem que ter um sistema de governança. Tem que haver uma transversalidade nessa governança. A comunidade precisa ser avisada, ter informação rápida. Nos países acostumados com outros tipos de eventos, furacões, como os EUA, você é avisado. E às vezes tem que deixar sua casa e ir para o abrigo. Mas aqui não tem. A gente não tem essa cultura de prevenção e vamos ter que fazer isso porque já está acontecendo. É surpreendente, em cidades do interior, mesmo. Em São Carlos, Araraquara, tem centros que são destruídos em minutos. Em São Carlos, e eu sei disso porque sou de lá, o centro comercial, onde está o mercado, a área baixa, já foi reconstruído duas, três vezes. Não há uma consciência de que nós precisamos ter um sistema de alerta, um sistema de aviso, fechar a Marginal. Tem que fechar. A gente sabe os pontos de inundação então não pode deixar a Marginal aberta e as pessoas entrarem lá e ficarem no meio da inundação. Então tem que ter um sistema de governança, um sistema de alerta e uma organização.
Claudia – Eu queria trazer um exemplo que talvez possa guiar a construção desse sistema de alerta e governança. Aqui em São Paulo aconteceram incêndios trágicos em prédios nos anos 1970. O Joelma, o Andraus, que depois inspirou até filme de Hollywood. Depois disso, a legislação mudou e todo lugar tem brigada de incêndio. Você vai ao cinema e tem que assistir, antes de começar o filme, ao que acontece se tiver incêndio. Você vai ao teatro, a mesma coisa. E a gente não tem brigada de inundação. Seria algo mais ou menos semelhante à brigada de incêndio?
Maglio – Não, a gente recebe esses avisos pelo celular, mas aquilo ainda é uma coisa muito precária, preliminar. Na verdade, tinha que ser um sistema levado a sério, com anúncios nos grandes canais, nas tevês, rádios, avisos de fechamentos e rotas de fuga. Saber das rotas de fuga e onde você não pode entrar no momento em que as chuvas estão concentradas sobre a cidade. E assim por diante. E como é uma metrópole imensa, de 855 km quadrados só a parte urbana de São Paulo, você precisa avisar porque às vezes não acontece no mesmo lugar. Acontece em lugares diferentes. Então esse sistema de alerta e de avisos é fundamental porque a situação mudou. O normal agora é: de repente, cai uma chuva intensa que, em quatro, cinco horas, inunda as áreas e quem está ali e fica preso pode perder a sua vida.
Claudia – Então temos aqui algumas orientações muito boas: permeabilizar a cidade, respeitar a elasticidade do rio, criar um programa para substituir a moradia dessas pessoas que estão em área de risco, de deslizamento, de enchente. Fazer o mapeamento desses lugares em São Paulo que inundam, criar sistemas de alerta e isolar os pontos críticos no momento da chuva. Já temos um caminho para começar. Agora eu queria ir para o outro cenário, o cenário da seca. Eu me envolvi muito com a crise hídrica, consegui ir para o conselho que criou o plano de emergência, está até no meu livro Horta das Corujas. Lá na página 89 coloquei a carta que a gente fez para o ex-prefeito Fernando Haddad, em 2014, com 25 recomendações. Eu não vi nenhuma preparação para esse cenário ser feita, de lá pra cá, e pergunto: você acha que a gente aprendeu alguma coisa com a crise hídrica de 2014 ou estamos no mesmo pé em que a gente estava em 2013?
Maglio – Houve alguns aprendizados. A própria Sabesp – pelo menos a Sabesp antes desse momento aí, de privatização – reconhece que houve um envolvimento grande das pessoas, de reduzir consumo, tomar banho mais rápido. Todo esse trabalho de educação ambiental teve um efeito muito grande. Diminuiu inclusive o consumo das unidades, de cada casa. O poder público fez obras de engenharia. Ele juntou as represas para quando faltar num lugar, levar de um lugar para outro e fazer aqueles remanejamentos. Por exemplo, trazer água do Vale do Paraíba para o Atibainha ou o Cantareira, quando falta no Cantareira. Ou trazer da Billings para melhorar o Alto Tietê. Fizeram essas obras de engenharia, de transferência das represas conforme o risco. Mas é pouco.
Claudia – O que mais temos que fazer?
Maglio – A gente precisa preservar a água. Nós temos nascentes, jogamos água fora das nascentes, tem a água subterrânea que os prédios ficam bombeando para a sarjeta e desperdiçam. Proteger todas as fontes. Na cidade do México, depois que eles tiveram crises semelhantes a São Paulo, fizeram uma agenda de resiliência para as águas. Então nós temos que mapear as nascentes, proteger as nascentes, conservar as águas subterrâneas e gastar menos água. Uma cidade da África do Sul, Durban, se não me engano, ficou numa situação que quase teve que ser deslocada porque não ia ter água. Não dá pra ficar eternamente trazendo água de 200 quilômetros pra cá porque vai faltar lá também. Como já falta, né, na região de Piracicaba, quando a gente desvia para o Cantareira. Então foi uma crise gravíssima e nós não aprendemos o suficiente em termos de se proteger. As normas não protegem as nascentes. Na cidade de São Paulo se faz prédio em cima de nascente e fica se jogando a água na rua. Isso tem muito. A gente tem até um projeto de lei, do Toninho Vespoli, que eu participei da elaboração com outros colegas, de cadastrar todas as nascentes urbanas da cidade e proteger todas elas como pequenas áreas de proteção porque elas são o nosso ponto de salvaguarda.
Claudia – Esse assunto toca muito meu coração porque eu sou regeneradora de nascentes e tenho um exemplo, que é a Horta das Corujas, que não tinha nenhuma nascente e quando você começa a permeabilizar o solo, que é uma coisa que ajuda na seca e na cheia, é incrível, as nascentes começam a surgir. Tem gente que não sabe a história da água de drenagem, que é quando se constrói aquelas garagens lá para o fundo e elas não são estanques. O mínimo do mínimo da redução de dano seria fazer a garagem estanque, fazer uma piscina ao contrário para deixar o lençol freático lá, bonitinho, se é que tem que fazer tanta garagem, mas não. Para ser mais barato, se constrói e se coloca bombas. Então é isso que você falou, a gente fica jogando uma água que é limpa na sarjeta o ano inteiro, abaixando o lençol freático. Então às vezes uma árvore que tá lá há uns 70 anos, bem antes daquele prédio existir, sendo hidratada pelo lençol freático, seca e morre quando começa o bombeamento. E as pessoas ainda colocam a culpa na árvore! Então fantástica essa iniciativa das nascentes, São Paulo é a cidade das nascentes, a gente precisa aprender a defender e aí queria dar um salve para os nossos amigos queridos da Praça da Nascente, no comecinho da avenida Pompéia. Quem não conhece, segue o perfil Ocupe e Abrace, eles estão num enfrentamento já há 10 anos com uma construtora que quer detonar as nascentes da praça e a gente precisa fortalecer essa luta e a luta de todo mundo que tá cuidando de nascente de rio nessa cidade.
Maglio – Sim, o caso passa por vários bairros. Na Vila Mariana, a nascente do Sapateiro, que alimenta os lagos do Ibirapuera, está sob risco. E há um movimento da comunidade de proteger porque o plano diretor colocou eixos de adensamento e verticalização dos novos prédios em cima da linha das nascentes. Isso é um contrasenso. Não protege as nascentes. Acontece no Saracura, que é a nascente perto da Paulista, então temos vários casos. Esse mapeamento, essa reversão, essa questão de destruir as nascentes, de jogar água fora, tudo isso é vital para quem quer proteger e conservar as águas para o futuro, porque elas vão ser as nossas soluções nas épocas de crise. E nós estamos jogando água fora.
Claudia – E se o que está se desenhando para a Grande São Paulo e para toda a região do Sudeste é mais seca, a água é preciosa. Cada nascente que a gente tem. Inclusive, Ivan, você comentou que as obras de engenharia feitas depois da crise hídrica foram sobretudo para roubar a água dos outros, que é trazer água cada vez de mais longe. E a gente sabe do poder político da capital, esses conflitos apareceram na época da crise hídrica, então para abastecer São Paulo deixa Campinas, Jundiaí, Piracicaba seco, vai retirar rio do vale do Ribeira, coisas horrorosas, né.
Maglio – É, o último sistema, que vem do Oeste, é o último sistema que a Sabesp fez, ele tira do Oeste. A região Oeste da Grande São Paulo é uma das mais pobres em rede hídrica. Então existe essa transferência para a Grande São Paulo dessa água que está salvando a região de Osasco, Cotia etc. A região Oeste, com esse novo reservatório, um sistema recente a 100 quilômetros de São Paulo, está tirando água da região de Sorocaba, da região Oeste. Mas não adianta, gente, é preciso conservar a água e não ficar puxando de um lugar para outro. Claro, a obra de engenharia, de ligar uma à outra, ajuda quando está faltando num lugar, mas vaso comunicante tem limite. Se todas elas abaixarem ao mesmo tempo, como abaixou a Cantareira, não tem como jogar de um lugar para o outro. A gente vai ter que usar água subterrânea, recuperar nascente e conservar água. Quando chove, você pode pegar do telhado verde, levar para uma cisterna, regar o seu jardim.
Claudia – Muito bom você falar em cisterna. Sou uma das fundadoras do “Movimento Cisterna Já”, junto com Ariel Kogan e Guilherme Castagna. A gente fundou esse movimento na crise de 2014, eu tenho cisterna e telhado verde em casa, isso é superimportante. Em tempos normais, a sua conta de água abaixa muito porque dá pra lavar roupa, fazer faxina, regar jardim quando a cisterna tá cheia. E em tempos de guerra, você tem a sua reserva de água que serve não só para seca como para inundação. Observe a situação do Rio Grande do Sul: uma das principais demandas e sofrimento por lá é a falta de água. As pessoas estão ali com água ao redor de tudo, mas é uma água suja, não dá pra usar. A cisterna é muito importante em momentos de enchente e eu fiz até um vídeo porque dá para potabilizar essa água. Fiz um vídeo explicando como se faz isso num momento de emergência. E outra coisa: momento de construir cisterna não é quando cisterna está aparecendo na televisão. Lembro que na época da crise hídrica eu já tinha cisterna em casa e como eu era fundadora do movimento, todo dia eu acordava de manhã e tinha umas 50 pessoas desesperadas pedindo cisterna, indicação de gente pra fazer cisterna e tudo o mais, os cisterneiros estavam trabalhando no limite da capacidade e ninguém dava conta. E isso não é só para casa, é para escola, empresa, igreja, condomínio, todo o mundo precisa ter cisterna. Outra vantagem da cisterna, além de resolver a vida quando tem enchente, é que ela ajuda a evitar a enchente. Porque toda aquela água, em vez de ir pra sarjeta, é retida.
Maglio – E esses prédios que usam o subsolo para fazer garagem, além de não fazer cisterna eles jogam a água fora. São muitos casos assim e essa legislação precisa mudar radicalmente. A legislação que controla as águas subterrâneas e obriga a recuperar, proteger, soluções que são conservação de água. E não de jogar água fora.
Claudia – Muito bom. Você colocou aqui vários caminhos e a gente já vai pra mais um cenário antes de terminar. Vamos falar das ondas de calor, que estão acontecendo. A gente teve uma onda de calor por mês nesse ano. Estamos na quarta onda de calor, que começou no dia 22 de abril. E hoje já é 13 de maio e continuamos afundados nesse calor gigantesco. Essa onda de calor de outono está elevando a temperatura máxima média da cidade de São Paulo 10 graus acima da antiga temperatura máxima média, que chegava ali aos 23 graus. Hoje a gente está com a máxima chegando aos 33 graus quase todo dia, isso é muito grave. Você é doutor em saúde pública e tenho pesquisado que a onda de calor está muito relacionada a excessos de mortes e agravo na condição de saúde das pessoas. E aqui em São Paulo a gente mergulhou nisso e parece que ondas de calor vão ser meio frequentes. Tem alguma coisa a fazer para amenizar?
Maglio – Essa questão é supergrave. As ondas de calor são gravíssimas porque agravam a situação das pessoas com doenças cardíacas e respiratórias. Há muito mais incidência de mortes por ataque cardíaco durante as ondas de calor. A situação das pessoas mais velhas ou com algum tipo de pré-doença piora muito e a cidade fica insuportável. E a gente não tem como amenizar isso, essas ondas não quebram, não conseguem nem ser minimizadas. Aí tem muita coisa pra fazer também, que é o caso da arborização urbana. Eu conheço uma cidade que está fazendo o seu plano diretor, que é Taboão da Serra, e estou acompanhando. Taboão precisa arborizar. Tem áreas zero, é ultradensa e pouquíssima vegetação. Tem ilhas de calor e ondas de calor porque são áreas que aquecem facilmente, com solo impermeabilizado, casas uma do lado da outra e não tem árvores. Precisamos ampliar ali a arborização urbana, esse programa precisa sair do papel. E as pessoas podem trabalhar e ajudar, como estão fazendo no Butantã, plantando para fazer corredor ecológico. A própria população está fazendo acontecer o corredor. No Butantã tem um movimento enorme de plantio de árvores e elas são vitais porque absorvem água, minimizam o calor e conseguem deixar o clima mais ameno. E a gente tem um pouquinho mais de condição de suportar o momento da onda de calor ou as ilhas de calor. Mas o principal é que não podemos ter cidades tão impermeabilizadas como temos. Isso vai levar a uma situação cada vez mais difícil de conviver. Nos bairros populares sem áreas verdes, às vezes as pessoas não percebem que não adianta ter só a casa. Precisa ter qualidade térmica. E tem várias coisas que dá pra fazer sem ar-condicionado. Por exemplo, o telhado ser branco para refletir mais. Vi muitos planos, de Nova York e outros lugares do mundo, com soluções simples que têm que acontecer em grande escala.
Claudia – A solução da onda de calor é verde, né? Eu até comprei um termômetro para a minha casa, de anteninha, e fiz uma medição numa dessas ondas de calor. Descobri que existem 10 graus de diferença do teto da casa, da laje chapada no sol, até a horta lá embaixo. Também fiz um lago em casa para ajudar na questão do microclima e deu 10 graus de diferença. O principal é plantar árvores. E quanto maior a árvore, melhor. Existe o Manual Técnico de Arborização Urbana da prefeitura de São Paulo que é muito bom. Está online e lista espécies nativas de acordo com o tamanho da calçada ou da área disponível, quem pode plantar na sua calçada ou no seu quintal uma árvore de grande porte. Eu plantei na minha garagem um jatobá, a gente precisa dessas árvores que abrem a copa lá em cima. As pessoas estão plantando muito resedá, uma árvore exótica e muito pequenininha, então vai pro manual técnico e encontra uma espécie nativa, a maior que você puder colocar. Essa questão de pintar o teto de branco é muito boa, parede verde com trepadeira também, o telhado verde é incrível, na minha casa refrescou bastante. Ivan, o que mais você quer comentar com as pessoas sobre os riscos climáticos de São Paulo?
Maglio – Acho que uns riscos aí são os nossos próprios políticos. Estamos recebendo uma informação trágica, essa de colocar a via Raposo Tavares dentro da cidade, ampliando as pistas, causando mais impermeabilização e destruindo árvores. Estamos tendo uma inversão de valores, como canalização, piscinões e agora por a rodovia dentro da cidade. Em vez de transformar aquela via numa avenida urbana, mantendo as árvores e ligando os lugares, estão piorando. A gente está vendo aí projetos absurdos que são a antítese de tudo o que a gente falou. Preste atenção porque é gravíssimo. Apesar de todo o esforço de buscar uma sustentabilidade, uma cidade resiliente, você ainda vai fazer o contrário. Vai fazer tudo o que a ciência diz que é pra não fazer, que é impermeabilizar mais, destruir árvores, trazer mais carros, em vez de transporte de massa, transporte eletrificado, que gera muito menos gases de efeito estufa e impactos para o planeta. Então estão acontecendo coisas como essas. Eles dizem que é a nova Raposo Tavares, mas ela é uma bomba sobre São Paulo muito grave.
Claudia – Estou com o Ivan nesse movimento “Nova Raposo Não”, é isso tudo o que ele falou. É piorar inclusive as condições climáticas da cidade. A gente precisa da cidade verde, como sociedade. É óbvio que existem exceções, mas a maioria das pessoas é naturofóbica, não quer ver rio, não quer ver árvore, se incomoda com a folha que cai, reclama que a folha entope a calha, mas calha foi feita para limpar. Vamos ficar espertos e nos prepararmos para os eventos extremos porque o clima já mudou e mudou pra pior.
Maglio – O Rio Grande do Sul mostra que é preciso outra forma de agir. Falta articulação, a gente vê vários níveis batendo cabeça e não tem uma governança nacional para esses eventos gravíssimos que estão batendo na nossa porta.
E o que falar do Parque Jurubatuba que a Prefeitura quer transformar em prolongamento da Marginal Pinheiros?